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Primavera, cadê você?

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A paisagem que vi pela janela no dia 22 de setembro tem até um “amarelinho” de outono e pouco de primavera.

Quando li pela primeira vez a expressão “descompasso fenológico” foi num artigo do New York Times em 2018 sobre impactos climáticos. Sabia que fenologia é o estudo das relações entre processos ou ciclos biológicos e o clima e que está diretamente associada às estações do ano e especificamente ligada à primavera. Porém, a ideia de “descompasso” agregou curiosidade ao assunto.

Procurando me aprofundar no tema, entendi que pesquisadores examinaram uma árvore em Hokkaido, no Japão, e constataram que as abelhas e as flores da árvore existiam de forma sincronizada.  Monitoraram as árvores e as abelhas por quase 20 anos, observando o clima, a floração, a reprodução das abelhas e a produção de sementes, e compreenderam a relação que existia entre o clima e a fenologia das espécies do local. O descompasso fenológico é um fenômeno que acontecia quando havia um desencontro: o degelo começava mais cedo e a floração ocorria antes que as abelhas houvessem chegado. As flores apareciam antes das abelhas. Ou seja, a falta de sincronismo gerava menos polinização e diminuía a quantidade de sementes. E assim segue o dominó próprio dos efeitos maléficos. É assim que funciona o descompasso na fenologia. Pois bem.

Dia 22 de setembro é o começo da primavera. É uma das poucas coisas que não mudaram no que havia em meu diário escolar no primeiro ano primário. Quando cresci, essa era a hora de sair para a rua com uma camisa mais colorida, tomar um sorvete na calçada ou um drinque com enfeites, meio caribenho. Hora de rir com os amigos, namorar de janela aberta. A época do ano para ouvir músicas menos introspectivas, cumprimentar os passantes, a pessoa da banca de jornais, jantar ao ar livre e sentir a presença dos jasmins, das árvores floridas, das noites coloridas de um azul marinho mais claro. Época de levar flores para casa. Só que, hoje em dia, não.

Passamos pelo 22 de setembro e nada de primavera. As estações estão deslocadas na linha do tempo. Elas não começam mais nas datas de sempre, com as quais os bichos, as pessoas e as plantas estão acostumados. Situações que tinham hora certa para ocorrer apresentam-se desordenadamente no cenário da vida, como atores que apareceram em cena antes ou depois da cena dramática ocorrer. Já há algum tempo não sinto aquele perfume súbito e sutil de dama da noite, próprio das noites de primavera, nem mesmo com a ajuda de um campari/soda e música apropriada.

Creio que fomos atropelados pelo descompasso fenológico. Não há vacina, isolamento, mandinga ou novena que resolva. A primavera vai chegar depois da hora, trazendo outras flores, outras sementes, outras cores. Os animais e as plantas vão ter que se virar e não sabemos qual será o prejuízo para a biodiversidade, mas certamente será significativo. Os ipês começavam em julho e até o fim de agosto ainda estavam se exibindo. Até os de flores brancas, que florescem rapidamente e duram 2 ou 3 dias. Diz um amigo que alguns ipês no Rio de Janeiro deram duas floradas. Não sei quando, exatamente. Assim como não sei mais que essas poucas linhas de descompasso fenológico. Sei mesmo é que a paisagem que vi da janela de casa no 22 de setembro tinha até um “amarelinho” de outono e pouco de primavera.

As abelhas vão hibernar e acordar, borboletas vão viajar milhares de quilômetros, insetos se alimentarão e serão devorados por pássaros que voam de um hemisfério para outro só para esse banquete enquanto as abelhas parcamente polinizam as flores, atrasadas.

É preciso que essa orquestra funcione de forma organizada e é preciso compreender o tempo que as plantas e os animais levam para aprender a se comportar dentro do novo cronograma. Não sabemos se a primavera será a mesma, mas sabemos que não será na mesma data.

É inegável o impacto das mudanças climáticas nas estações do ano.
E pelo visto, é preciso atenção ao descompasso fenológico.
Tomara que dê certo.

Feliz primavera!

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