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Grandes empresas, grandes impactos: os rastros do sucesso de uma moda descartável

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Novas evidências de trabalho forçado na cadeia têxtil da maior empresa de “fast fashion”, a Shein, expõem impactos deste modelo de produção e consumo que prioriza a oferta de peças de vestuário a baixo custo, em detrimento das condições de trabalho de funcionários, e que levou a indústria da moda ao patamar de segunda mais poluente do mundo, atrás apenas da indústria do petróleo.

Nas últimas semanas, resultados de testes de laboratório realizados em duas ocasiões neste ano, publicados pela Bloomberg News,comprovaram que roupas enviadas para os Estados Unidos pela Shein foram confeccionadas com o algodão proveniente de Xinjiang, região situada a noroeste da China investigada por trabalho forçado envolvendo minorias muçulmanas. A gigante chinesa do varejo online, avaliada em 100 bilhões de dólares em abril deste ano, não contestou a origem atribuída ao algodão contido nas peças de roupas analisadas, mas afirmou que adota medidas para garantir o cumprimento de leis e regulamentações locais.

Desde janeiro de 2021, a comercialização do algodão da região é proibida nos Estados Unidos devido a uma série de denúncias por parte de trabalhadores, grupos de pesquisadores e advocacy que afirmam que o governo Chinês colocou mais de um milhão de pessoas em campos de “reeducação” onde são forçados ou coagidos a trabalhar. Em agosto (31) deste ano, a ONU publicou um relatório sobre supostas violações de direitos humanos de uigures e outras minorias muçulmanas que habitam a região chinesa. Contudo, já há quatro anos informes de mídias, grupos de pesquisadores e agências governamentais denunciam o uso de trabalho forçado de minorias étnicas na indústria têxtil em Xinjiang.

A despeito das barreiras criadas pelo Departamento de Estado dos EUA, as ações mostraram-se ineficientes para conter a entrada da matéria-prima da região chinesa sob embargo no país. Diferentemente de outros varejistas que importam grandes quantidades de produtos, a Shein envia remessas individuais a seus clientes cujo valor geralmente é inferior a 800 dólares, valor a partir do qual são exigidos relatórios por parte da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA. Embora a Shein não seja a única varejista a escapar desse controle, é de longe a maior.

Essa não foi a primeira vez que a empresa enfrenta acusações de exploração de trabalho forçado na sua cadeia de suprimentos. Nos últimos dias, uma investigação desencadeada por alegações de abuso trabalhista em recente documentário da televisão britânica, levou a Shein a admitir que duas de suas instalações na China violaram leis trabalhistas locais, compelindo seus funcionários a jornadas de trabalho maiores do que as permitidas. A fim de prevenir novas ocorrências, a empresa declarou que gastará US $15 milhões de dólares nos próximos 3 a 4 anos para atualizar centenas de fábricas, aumentar verificações locais e investir em treinamentos para garantir que seus fornecedores atendam seu código de conduta.

Embora a empresa tenha afirmado realizar auditorias regulares com o objetivo de garantir uma política de tolerância zero para trabalho forçado e outras preocupações sociais e ambientais descritas vagamente em seu relatório de Sustentabilidade e Impacto Social[1], os acontecimentos recentes vão na direção oposta, deixando evidente a falta de transparência e monitoramento da sua cadeia de suprimentos e aumentando as preocupações sobre seu real impacto.


[1] O relatório se encontra disponível no seu website dos Estados Unidos, disponível em: https://us.shein.com/2021-Sustainability-and-Social-Impact-Report-a-1218.html.  

Eficiência de custos às custas da transparência na cadeia de suprimentos de vestuário

O notável problema de falta de transparência na cadeia de suprimentos da Shein, está longe de ser uma particularidade da empresa dentro da indústria da moda. Um estudo global conduzido, em agosto do ano passado[2] (2021), pela KPMG junto a mais de 200 executivos sênior, representando marcas, varejistas, fornecedores, fabricantes e agentes de abastecimento de vários tamanhos, mostrou que 80% das empresas que atuam no setor não tinham uma visão geral completa de todos os elos de sua cadeia de suprimentos, e somente 15% possuíam rastreabilidade total.

A transparência na cadeia de suprimentos é um pré-requisito fundamental para a sustentabilidade e é somente por meio dela que se torna possível verificar se as práticas sociais, ambientais e econômicas de uma empresa são, de fato, sustentáveis. Para ter uma cadeia de suprimentos transparente são necessárias visibilidade total das empresas que participam dela e rastreabilidade de todas as matérias primas utilizadas. É a partir da visibilidade e da rastreabilidade que problemas relacionados à origem de matérias primas, condições de trabalho, uso de recursos naturais, geração de resíduos e poluição podem ser diagnosticados ou evitados.  Além disso, a transparência contribui para a redução de riscos nas operações ao longo de toda a cadeia e constitui uma vantagem competitiva, pois possibilita verificar se critérios socioambientais são atendidos, dando credibilidade às atividades da empresa e evitando práticas como o greenwashing.

Mas então, o que explica a falta de transparência das empresas de vestuário?

Ao longo de décadas, a cadeia de suprimentos de vestuário se desenvolveu para alcançar dois objetivos: minimizar custos e aumentar o consumo. O foco exacerbado na eficiência de custos acabou por externalizar os danos sociais e ambientais gerados pelo processo de produção de roupas, deixando rastros profundos nas paisagens e sociedades em que se instala.


[2] O estudo “Moving the needle: threading a sustainable future for apparel” foi desenvolvido pela KPMG, uma organização global de empresas de serviços profissionais independentes. Para saber mais, acesse: https://home.kpmg/cn/en/home/about.html.

Do desabamento da fábrica em Daca ao cemitério de fast fashion no deserto do Atacama: os legados de um modelo insustentável

O modelo fast fashion surgiu em meados da década de 1990, quando a indústria de vestuário começou a sofrer mudanças em sua dinâmica. O desaparecimento da produção em massa, aumento de estações de moda e modificações de características estruturais na cadeia de suprimentos levaram varejistas a buscarem baixo custo, flexibilidade no design, qualidade, entrega e velocidade de mercado. O marketing foi também identificado como um dos fatores-chave da competitividade na indústria de vestuário. A conjunção desses aspectos fez emergir o que chamamos de fast fashion ou moda rápida, uma estratégia de negócio que preza pela rapidez dos processos de produção, consumo e descarte de roupas e que por sua vez demanda recursos humanos e naturais de forma muito intensa.

A fim de cortar custos, as empresas de moda passaram a terceirizar a fabricação de peças de países em desenvolvimento onde os salários são baixos, situados em sua maioria no sul e sudeste asiático, como China, Bangladesh, Turquia, Vietnã, Índia, entre outros. Esses arranjos possibilitaram que as empresas passassem a escolher fábricas que ofertam preços cada vez mais baixos, mudando seus fornecedores a cada nova demanda sem compromissos ou multas. Se por um lado essa expansão do setor têxtil e a proliferação de fábricas de vestuário contribuíram para o crescimento econômico desses países, a competitividade entre fábricas aumentou brutalmente levando a situações insalubres e de alto risco para seus trabalhadores.

O desabamento do edifício Rana Plaza, na periferia de Daca, em Bangladesh, em abril de 2013, é um dos retratos mais trágicos da exploração de mão de obra pela indústria de vestuário. O incidente que levou a mais de mil mortos e quase 2500 feridos, ocorreu um dia após terem sido identificadas fissuras na estrutura do edifício. O colapso da fábrica foi avaliado por especialistas com “totalmente evitável”, tanto por conter falhas de engenharia quanto do ponto de administrativo, visto que os funcionários das fábricas instaladas no edifício foram coagidos a trabalhar a despeito do conhecimento dos riscos pelos proprietários e gerentes destas. Após o desabamento do Rana Plaza, diversas iniciativas[3] surgiram a fim de enfatizar a urgência de condições de trabalho éticas na indústria de vestuário e de compensar as famílias afetadas pela tragédia.

O outro lado também perverso da mesma moeda deste modelo de moda descartável é o que ela deixa para trás, depois do último elo de sua cadeia de suprimento. Por trás dos milhares de vídeos do Tiktok, onde clientes esbanjam o recebimento de diversas peças de roupas compradas pela internet a um preço baixo, em outros lugares do globo cargas contendo toneladas de peças acabam incineradas ou descartadas em aterros, muitas das quais sem terem sido utilizadas uma única vez. Um dos lugares emblemáticos quando se trata do descarte dos produtos da indústria da moda se situa na região mais turística do Chile, no deserto do Atacama, onde existe o maior lixão clandestino de roupas do planeta.

Anualmente chegam ao Porto de Iquique, no Chile, mais de 59 mil toneladas de roupas provenientes dos Estados Unidos, Europa e Ásia, majoritariamente fabricadas na China e em Bangladesh. As roupas descartadas chegam em fardos que passam por um processo de seleção para revenda no próprio Chile, que tem um sólido comércio de roupas de segunda mão, ou acabam indo para países vizinhos, via contrabando.  Deste montante que adentra a Zona Franca de Iquique, pelo menos 39 mil toneladas acabam descartadas clandestinamente em pleno deserto, em Alto Hospício, uma comunidade com altos níveis de pobreza e vulnerabilidade. Há cerca de 15 anos os resíduos têxteis se acumulam na região atingindo uma área de 300 hectares. A falta de recursos para a fiscalização contribui para que o problema continue aumentando a cada ano.

Acontece que para além das emissões de gases de efeito estufa ocasionadas pela degradação e decomposição de fibras naturais, como a lã e algodão, a maior parte das peças descartadas são fabricadas a partir de fibras sintéticas que podem permanecer inalteradas por mais de 200 anos e ao mesmo tempo liberar produtos químicos nocivos ao meio ambiente. Este é o caso do poliéster, nylon, acrílico, entre outros materiais feitos a partir de petróleo bruto que não podem ser reciclados. Com o passar dos anos, o desgaste das roupas feitas com essas fibras sintéticas libera microplásticos que vão para a atmosfera. Pelo movimento do ar essas partículas podem ser transportadas para cursos d’água, oceanos e ecossistemas terrestres interferindo na sua temperatura e contaminando seres vivos e alimentos.


[3] Uma dessas iniciativas foi o Acordo sobre Incêndio e Segurança Predial assinado por mais de 220 empresas em Bangladesh em 2013. Para saber mais, acesse: https://bangladeshaccord.org/about.

A gigante pegada ecológica da indústria da moda

Embora os lixões da moda como o do deserto do Atacama exponham de forma clara e chocante parte da gigante pegada ecológica da indústria de têxteis e vestuário – a geração de resíduos -, outros aspectos como suas longas cadeias de suprimentos e alto consumo de energia contribuem para torná-la umas das mais poluentes do mundo. Estima-se que seja responsável por 10% das emissões globais de carbono, percentual que representa mais do que é emitido pelo transporte marítimo e por voos internacionais conjuntamente.

O uso e a poluição de água são outros grandes problemas criados pela indústria têxtil. Cerca de 20% da poluição global da água limpa é causada por produtos de tingimento e acabamento que geram efluentes extremamente poluentes e ricos em sais que, por vezes, são lançados diretamente no ambiente. Calcula-se que cerca de 200 mil toneladas de colorantes utilizados no processo de tingimento sejam “desperdiçados” nos efluentes do setor têxtil.

É evidente que a indústria da moda necessita de uma mudança sistêmica e de larga escala para que realmente incorpore a sustentabilidade ao longo de todos os elos de sua cadeia. Conforme apontam autores de um estudo recente[4], para que essa mudança aconteça é necessário que haja colaboração entre stakeholders, inovação tecnológica, políticas governamentais e apoio à infraestrutura.

“As soluções variam de avanços técnicos a modelos regenerativos para a agricultura, inovações de reciclagem e biomateriais, bem como iniciativas de reuso e revenda para apoiar uma economia circular”.

Para que a indústria da moda reduza sua pegada ecológica, será necessário que faça a transição de um modelo de negócios linear para um circuito fechado, chamado modelo circular, buscando soluções sustentáveis para recuperar, reutilizar e reciclar têxteis usados. Ainda que muito distante deste objetivo, a sustentabilidade está em alta na agenda de consumidores, governos e organizações não governamentais que cada vez mais cobram transparência e comprometimento ético por parte das empresas.


[4] O estudo “An overview of the contribution of textiles sector to climate change” publicado pela revista eletrônica Frontiers in Environmental Science está disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fenvs.2022.973102/full.

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