O carbono é um elemento versátil que constitui a base da vida na terra, presente em todos os organismos vivos e nos processos por eles realizados, nos solos e oceanos e em baixa concentração na atmosfera, onde se encontra na forma de gás, o dióxido de carbono, que resulta de processos como a respiração, a queima de combustíveis fósseis e também o desmatamento e a queima de florestas. No sentido oposto, as plantas e algas removem o dióxido de carbono da atmosfera por meio da fotossíntese e utilizam o carbono para o seu crescimento.
Em meados do século XVIII, com a Revolução Industrial a concentração de gás carbônico começou a se elevar gradualmente como resultado do aumento das emissões ocasionadas pela queima de combustíveis fósseis como carvão, gás e petróleo, os quais contêm o carbono retirado da atmosfera pelas plantas e acumulado ao longo de milhares de anos. Entre 1960 e 2010, o ritmo de emissões de gás carbônico aumentou drasticamente, passando de 11 bilhões de toneladas por ano para 35 bilhões[1], uma velocidade muito superior à da remoção desse gás através de processos naturais que ocorrem na terra ou nos oceanos, o que tem feito com que ele se acumule cada vez mais ao longo do tempo na atmosfera.
[1] Fonte: National Oceanic and Atmospheric Administration – NOAA Climate.gov. Disponível em: https://www.climate.gov/news-features/understanding-climate/climate-change-atmospheric-carbon-dioxide#:~:text=The%20amount%20of%20carbon%20dioxide%20in%20the%20atmosphere%20.
Devido à capacidade de absorver e irradiar calor, a presença do dióxido de carbono, bem como outros gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera faz com que parte da radiação solar fique nela retida, aumentando a temperatura na superfície do planeta. Trata-se de um fenômeno natural e imprescindível para a manutenção das temperaturas médias globais e, consequentemente, da vida na Terra. No entanto, a alteração desse equilíbrio entre emissões e remoções desses gases ocasionada pela interferência antrópica tem levado a evidentes mudanças no clima e drásticas consequências, como derretimento do gelo polar, aumento do nível dos oceanos, desertificação, ocorrência mais frequente de eventos naturais extremos, como secas intensas, tempestades, inundações, além da perda de biodiversidade.
A Convenção do Clima na ONU: compromissos e mecanismos para a mitigação de emissões de gases de efeito estufa (GEE)
Embora o debate internacional sobre questões ambientais tenha se iniciado há meia década, com a Conferência das Nações Unidas pelo Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972, somente vinte anos mais tarde o primeiro tratado internacional abordando a necessidade de estabilizar a concentração de GEEs na atmosfera foi formalizado. Este tratado, chamado Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (em inglês, United Nations Framework Convention on Climate Change ou UNFCCC) foi aprovado na conferência conhecida como Cúpula da Terra ou Eco-92, realizada no Rio de Janeiro, e entrou em vigor dois anos mais tarde, em 1994.
Apesar de trazer à pauta a necessidade de reduzir as emissões de carbono, a Convenção não estabeleceu metas, cronograma e obrigações para os países signatários. Ao invés disso, criou a obrigatoriedade de reuniões anuais entre os países signatários chamadas de Conferência das Partes (COP), nas quais são avaliados os progressos das medidas adotadas pelos países que participam da Convenção, bem como, realizados novos compromissos alinhados a seus objetivos. Pode-se dizer que a UNFCCC funciona como um acordo guarda-chuva ao qual estão vinculados outros acordos e tratados realizados entre os países signatários como o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris.
O Protocolo de Kyoto, proposto durante a COP 3, em 1997, foi um marco nas negociações internacionais sobre o clima, pois estabeleceu um compromisso legal de reduzir as emissões de GEE geradas pelas atividades humanas em 5,2% em relação aos níveis registrados em 1990 no período entre 2008 e 2012, criando metas específicas para os países com base em suas emissões históricas. Para atingir essas metas, o protocolo criou três mecanismos que incorporam a lógica de mercado tendo como base o princípio poluidor-pagador[2]: o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), o comércio de emissões e o mecanismo de implementação conjunta. Esses mecanismos, chamados mecanismos de flexibilização deram origem a um novo mercado global, o mercado de carbono.
[2] Este princípio determina que os custos ambientais e sociais de uma determinada atividade sejam internalizados no custo dos negócios responsáveis por ela.
Mecanismos de flexibilização estabelecidos pelo Protocolo de Kyoto
O MDL é um mercado que consiste na realização de projetos de redução de emissões de GEE, ou de remoções desses gases em países em desenvolvimento e na comercialização das chamadas Reduções Certificadas de Emissões (CER, do inglês) para países desenvolvidos. São exemplos de MDL projetos que reduzem o consumo de combustíveis fósseis, geram energia por meio de fontes renováveis e realizam o reflorestamento de áreas degradadas.
Por sua vez, o comércio de emissões (emissions trading) parte do conceito cap-and-trade no qual são estabelecidos limites para emissões nos países desenvolvidos. Caso estes limites não sejam atingidos, a quantidade remanescente é transformada em licenças que podem ser comercializadas com outros países desenvolvidos que tiverem emissões de gases poluidores acima do limite estabelecido.
Já o mecanismo de implementação conjunta permite que países desenvolvidos atuem conjuntamente para atingirem suas metas de redução, o que ocorre basicamente por meio da troca do excedente da redução emissões de um país hospedeiro por investimentos estrangeiros e transferência de tecnologia.
Em vigor desde 2005, o Protocolo de Kyoto possibilitou a emergência de diversos mercados de carbono ao redor do mundo; o mais antigo deles é o Sistema de Comércio de Emissões da União Européia, que ainda que imperfeito tem sido utilizado como modelo para outras economias. Outros esquemas estão em operação no Canadá, Japão, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Suíça e EUA. No começo de 2021, a China lançou o maior mercado de carbono para sua indústria termoelétrica, o setor soma 40% das emissões chinesas.
Dez anos mais tarde, com o objetivo de limitar o aumento da temperatura a no máximo 2°C em relação a níveis pré-industriais, o Acordo de Paris, assinado em 2015 durante a COP 21, reconheceu a necessidade de todos os países signatários – e não somente os desenvolvidos – estabelecerem metas de redução de emissões de GEE, denominadas NDCs (National Determined Contributions), que tem como primeiro prazo ano ano de 2025. Com isso, conforme determina o artigo 6, houve a reestruturação dos mecanismos de mercado de carbono em vigor desde 2005, os quais passaram a incluir os países em desenvolvimento no comércio internacional de reduções de emissões. Os novos instrumentos para que países signatários alcancem suas metas passaram a ser os Resultados de Mitigação Internacionalmente Transferidos (ITMO, do inglês) e os comumente chamados Mecanismos de Desenvolvimento Sustentável (MDS).
Instrumentos de mercado de carbono do artigo 6 do Acordo de Paris
O primeiro instrumento, ITMO – Internationally Transferred Mitigation Outcomes, se fundamenta na comercialização dos resultados de mitigação atingidos por um país, ou seja, suas reduções ou remoções de GEE após 2020, para outro país, a fim de abater de sua meta climática esses resultados.
O segundo, Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS), de forma similar ao MDL possibilita que projetos de redução ou remoção de emissões executados por entidades públicas ou privadas aprovados pelo governo do país onde estão sediados sejam usados por outros países para que atinjam suas metas climáticas na forma de créditos de carbono.
No ano passado (2021), o encontro das partes da Convenção do Clima em Glasgow culminou na regulamentação de ambos os instrumentos criados pelo Acordo de Paris – ITMO e MDS – e na decisão de que estes podem ser usados, não só no abatimento das metas de redução de emissões de um país, mas também de setores e empresas dentro de mercados de carbono regulados ou voluntários domésticos, reconhecendo a importância desses usos para atingir as metas do Acordo de Paris e fazendo emergir um novo tipo de crédito de carbono mais integrado no mercado global, conhecido como “unidade de contribuição de mitigação”.
Mas afinal, o que é mercado regulado e mercado voluntário?
O mercado regulado de carbono é aquele em que os governos nacionais, estaduais ou regionais impõem limites para as emissões de gases dos diferentes setores e também metas de redução dessas emissões. De acordo com esses limites, licenças de emissões são distribuídas entre as empresas desses setores; caso haja redução comprovada de emissões de GEE, a quantidade remanescente pode ser comercializada com outras empresas ou países que necessitem compensar seu excedente de emissões. Vale ressaltar que trata-se de um sistema fechado, no qual as trocas de permissões só podem ser realizadas entre mercados regulados com parâmetros parecidos. Apesar de obrigatório e mais exigente em relação aos sistemas de verificação de certificação, esse mercado é maior, porém necessita de regulamentação no âmbito nacional.
No caso do mercado voluntário, os créditos de carbono podem ser gerados ou comprados por qualquer pessoa, governo, empresa ou organização não governamental (ONG) e, assim como no mercado regulado, também são verificados e auditados por entidade certificadora independente. No entanto, por não estarem sujeitos ao registro da ONU, não podem ser contabilizados nas metas de redução de emissões dos países, apesar de terem sido reconhecidos como um meio importante de atingir o objetivo do Acordo de Paris.
Nesse mercado, por via de regra os créditos de carbono são gerados por projetos que realizem atividades nas quais o carbono ou outro gás poluente deixe de ser emitido, parcial ou totalmente, ou seja removido da atmosfera em relação a uma linha de base. Projetos com foco em reflorestamento, redução de emissões por desmatamento e degradação florestal, geração de energia limpa e agricultura sustentável são exemplos de atividades elegíveis para a geração desses créditos. Na outra ponta, empresas, organizações e consumidores podem comprar esses créditos a fim de compensar parte da sua pegada de carbono. Atualmente a pegada de carbono da humanidade corresponde a mais da metade da nossa pegada ecológica total.
Desde a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, o mercado voluntário tem crescido significativamente, em vista do crescente reconhecimento da urgência de se reduzir as emissões de GEE. A partir de 2016, com o Acordo de Paris, o ritmo desse crescimento ganhou fôlego; entre 2017 e 2021 o número de créditos de carbono no mercado voluntário passou de 140 milhões para mais de 370 milhões. Cada vez mais empresas e organizações motivadas pela responsabilidade socioambiental e a valorização de sua imagem institucional estão recorrendo às compensações voluntárias para alcançar a neutralidade de carbono, também chamada net-zero.
O mercado de carbono no Brasil
Embora o Brasil tenha ficado apartado do mercado de redução de emissões criado pelo Protocolo de Kyoto, teve uma participação expressiva no desenvolvimento de projetos dentro dos MDLs, tendo sido pioneiro no desenvolvimento deste tipo de projetos, com o primeiro projeto registrado junto à ONU. Até 2021, mais de 750 projetos de MDL registrados têm o Brasil como país anfitrião, de acordo com dados da UNFCCC. Os setores nos quais estão concentrados os projetos são energia hidrelétrica, captura de gás de aterros sanitários e redução ou prevenção de emissões de metano. Juntos esses projetos têm o potencial de evitar que 169 milhões de toneladas de GEE sejam emitidas ao ano.
Já em relação ao mercado voluntário, nota-se que o crescimento dos créditos de gerado no país é bastante superior ao índice global. Somente no ano de 2021 foram gerados mais de 40 milhões de créditos, um aumento de 236% em relação ao ano anterior e 779% em relação à quantidade gerada em 2019. Esse aumento está relacionado à alta demanda de créditos pelo setor empresarial a fim de cumprir compromissos assumidos de neutralidade de carbono seguindo a tendência global. Embora o Brasil ocupe também uma posição de destaque, ocupando a quarta posição em termos de volume de créditos gerados, até 2021 existiam apenas 159 projetos, enquanto Estados Unidos e Índia tem mais de mil cada um, fato que denota seu potencial de crescimento.
A despeito da significância e do protagonismo do Brasil nos mercados anteriormente relacionados, somente em 2022, após cerca de cinco anos de discussões técnicas, o governo federal lançou um decreto para criar o tão esperado Mercado Regulado Brasileiro de Carbono (Decreto n°11.075/2022). Esse atraso brasileiro fez com que, diferentemente dos demais mercados de carbono em que o Brasil se antecipou, o país ocupe a posição de coadjuvante nas discussões internacionais para regulamentar um mercado global de carbono. Apesar dos avanços recentes nesse mercado, especialistas apontam que ainda teremos um longo caminho para criar um ambiente regulado de precificação de carbono no país, considerando que no decreto não há definição de setores, metas, premissas e prazos fundamentais para esse sistema funcionar. De toda maneira, a iniciativa tem reverberado positivamente na mobilização da sociedade e contribuído para o debate e engajamento dos diferentes setores da economia.