O ambiente molda o homem, diria um filósofo contemporâneo, mas a forma do sertão tem alguma mágica, e transforma as agruras num ambiente de vida e alegria difíceis de explicar, mas muito bonitos de se ver.
Quando descemos do avião em Natal, saídos de uma São Paulo cinzenta, úmida e fria, já se anunciou a diferença para o clima que nos acompanharia nos 4 dias que viriam. Calor de 35 graus, sol a pino e ar seco, ainda na capital. Nos instalamos num hotel aconchegante à beira-mar e tiramos algum tempo para refrescar o corpo e refazer as forças, cada um ao seu jeito. O meu jeito é pisar no mar, e foi o que eu fiz assim que o sol deu uma trégua. Caminhei na praia de Ponta Negra e dali já vi os sinais desse pedaço do Brasil que parece ter como sina a peleja incessante com a natureza. A orla repleta de hotéis e bares movimentados se instala uns bons metros acima da areia dura da praia, que finda numa muralha de contenção com pedras. O tombo é grande, e exige um acesso de escadas aqui e ali. A mão do homem, por enquanto, está ganhando a briga.
À noite recebemos amigos no restaurante do hotel, incluindo nosso anfitrião e guia pela incursão dos dias seguintes. Leonardo Braz é um filho da terra, legítimo, e nos convidou para conhecermos melhor o sertão a partir de sua cidade natal, Acari, duzentos quilômetros adentro do Rio Grande do Norte, coisa que faríamos a partir da manhã seguinte, e ele avisou: “Levem filtro solar, um galão se possível…”.
Eu já havia visitado o semiárido em Sergipe, num momento de muita seca, mas foi um bate volta, um passeio rápido até a barragem de Xingó, partindo de Aracaju. Minha ignorância com relação ao sertão era total, e com a ignorância vêm os estereótipos e preconceitos. O propósito dessa nova viagem era esse. Conhecermos um pouco melhor este cenário tão representativo da nossa cultura, da nossa gente, e da nossa paisagem, que o Brasil da cintura para baixo quase sempre romantiza demais, e valoriza de menos.
A velocidade da paisagem se modificando, e do mundo se unificando
Partimos. As estradas são boas. O carro avança rápido e a paisagem muda, gradual e rapidamente também. O mato vai ficando mais ralo e mais cinza, as manchas de açude diminuindo, até secar. O chão vai se pintando de barro e as árvores viram arbustos secos, que o olhar desacostumado assume como mortas. “Na primeira água fica tudo verde de novo”, nos ensina Leo. É difícil entender, o seu cérebro diz “galho seco = galho morto”, mas não.
Um ou outro curso d’água ainda resiste, e logo se reconhece aquele feixe de lenha seca no suporte das folhas verdes. Primeiro vêm os angicos, aroeiras, cumarus, que habitam também outros biomas, mas logo a caatinga se manifesta mais plenamente e se fazem mais presentes o umbus, as barrigudas, catingueiras e carnaúbas e, finalmente, as cactáceas, junto com as bromélias.
É lindo de ver como o ambiente se defende, como se preserva para os dias mais duros, e como o homem um dia aprendeu a viver esse ciclo de vida e aparente morte. Parece um milagre, mas é só a natureza resistindo, a vida se manifestando. O fato é que a paisagem se forma muito diferente para nós, forasteiros. Estradas longas e retas com imponentes muralhas de pedra e barro se erguendo do solo aqui e ali como muralhas naturais, em ranhuras mescladas de tijolo e cinza. É bonito, diferente e bonito, imponente, na moldura de um céu muito azul e sempre coberto de nuvens que por algum motivo não se convertem em chuva.
Fico constrangido em comentar meu encantamento com aquele cenário tão lindo, e que eu sei desafiador, mas Leonardo, generoso, me acolhe: “Aqui quando alguém diz que o dia está bonito é porque está formando chuva, mas isso não acontece antes de janeiro…”, nos garante com uma surpreendente tranquilidade.
O caminho não nos reserva apenas diferenças.
Antes de Acari, paramos para um pastel, em Tangará, numa lanchonete na beira de estrada que poderia estar, sei lá, na Rio-Santos, ou numa esquina do Itaim em São Paulo, exatamente com o mesmo layout, os mesmos letreiros luminosos, os mesmos balcões térmicos. Nenhuma barraca de pau, nenhuma toalha de plástico, nem areia no chão. Pastéis bons, todos os sabores que conhecemos e uma outra regionalidade. Camarão com natas, carne de sol. O mundo reverberado na mídia amplificada pelos meios digitais nivela algumas de nossas diferenças num nível quase frustrante ao meu coração carente de novidades, estamos muito iguais.
Nas fazendas e grotões que visitaríamos adiante meu celular me abandonou, não dava sinal, mas a moradora que nos recebia não largava do seu, e das “notícias” que pululavam no seu Facebook. Sua única queixa era o preço da internet “quatro vezes mais caro que na cidade”, lamentava. A natureza resiste, mas o “bicho home” se entrega com mais gosto.
Finalmente alimentados, seguimos o nosso destino, e depois de uma parada rápida na acolhedora casa de Leo em Acari, fomos almoçar na Beira da Barragem Eurico Gaspar Dutra, na Pousada de Gargalheiras, cercada por uma paisagem fantástica de serras e montes, muito secos, mas lindos, formando um cenário acolhedor para casas de veraneio e esportes náuticos. O nível das águas estava baixo e mais uma vez a paisagem me fascinava, não sem uma certa aflição. A tranquilidade dos locais me intrigava, e aos poucos percebi que conviver com o vai e vem das águas é um aprendizado da vida. Tem desejo, mas é um sofrimento controlado. A chuva é parceira, e a seca é uma amiga de séculos, eles se conhecem, e fazem planos lendo seus sinais. Na Fazenda Talhado, cenário principal das nossas incursões e locação do filme “Bacurau”, ouvi de seu Toinho Pequeno um voto firme de esperança. Ele abria os braços e falava com um brilho nos olhos da previsão de qualidade do próximo “inverno”, que para eles começa em janeiro: “As aroeira tão dando cada cacho assim na serra, e os angico, tudo em flor..”. Talvez eu tenha confundido o cacho dos angicos com as “flor de aroeira”, mas o fato é que, para eles, isso é certeza de chuva boa chegando. Fiquei de voltar lá para ver, e ele sorriu de satisfação.
O sertão de Seridó – Acari
Acari faz parte de uma região bem específica do Nordeste e mesmo do Rio Grande do Norte, denominada Seridó, com registros de ocupação humana de 10.000 anos, e palco de sangrentos embates entre colonizadores e populações indígenas no século XVII. Sua ocupação se adensou de fato a partir do século seguinte, quando paraibanos e pernambucanos buscaram espaço para a criação de gado, dado que a Carta Régia não permitia competição ao plantio de cana nas áreas perto do Litoral. Na sequência vieram os portugueses do Norte e os demais migrantes europeus e de colônias já estabelecidas do Nordeste, compartilhando o espaço com os lusitanos, criando uma vocação para pecuária ainda forte em toda a região, em especial para a produção de leite e queijos regionais.
As fazendas são retrato vivo dessa história e da luta para manter essa tradição com inegável orgulho e prazer. As casas exibem as ferramentas que abriram caminho, as fotos dos familiares e do vaqueiro forte, marcado pela peleja e paramentado para enfrentar a rudeza do mato seco. A mesa é farta, o queijo é bom e o sorriso é garantido. Eles adoram contar suas histórias, em detalhes, e é uma história boa de ouvir. Gostam de política, de música e de vida social, com festas na rua, eventos esportivos, concursos, celebrações.
Seridó potiguar
Área | 9 374,063 km² |
População | 310 mil* |
Densidade Populacional | 33 habitantes por km²* |
PIB | 3.119.790.000* |
PIB per capita | R$ 10.700,00* |
Total de municípios | 24 |
Maiores municípios | Caicó (71 mil habitantes), Currais Novos (45 mil) e Parelhas (21 mil) |
Município de Acari
Área | 608,4 km² |
População | 11.106* |
Densidade Populacional | 18,3 km²* |
PIB | R$ 130,7 milhões** |
PIB per capita | R$ 11.739,54** |
** IBGE 2019*Fonte: IBGE – Estimativas relativas a 2014
Outros recursos vieram com o tempo, como a mineração, o garimpo e uma vigorosa expansão da indústria de confecções, com oficinas brotando por todos os cantos e gerando emprego. Não por acaso a região contribui com alguns dos melhores IDHs do Nordeste, depois das capitais. Acari ganhou o título de “Cidade mais limpa do Brasil” em 2015, mas a julgar pelo que vimos deve ter mantido o mérito sem dificuldades. O orgulho aqui não é pecado, é uma experiência de vida.
Enquanto passeava conosco entre as barracas da quermesse de sábado à noite, Fernando catava as garrafinhas vazias que sobravam nas mesas espalhadas em frente ao adro da igreja, e as depositava numa das várias latas de lixo espalhadas pela praça. Fernando é prefeito de Acari, incansável. Nos falava com satisfação incontida dos 200 empregos formais gerados pela indústria de confecção nos últimos meses, e do que isso representa para uma cidade com pouco mais de 10.000 habitantes. Na manhã seguinte ele nos esperava desde cedo para assistirmos ao ensaio da banda local.
Em princípio achei o convite excessivamente prestigioso, mas depois de alguns minutos entendi. Não era uma homenagem, era um mergulho na vida e na história de uma cidade, e de uma região. Ouvimos dobrados, valsas e muita história, mais uma vez contada em detalhes para nós e para os disciplinados músicos, um mix surpreendente de cores, gêneros e idades, enfiados numa mesma sala de um domingo de sol desde o comecinho da manhã em bermudas, chinelos e muita concentração. Finalizamos com um dobrado sob a batuta vibrante do maestro que quase levou o prefeito às lágrimas, e era só o que faltava, pois regendo a trupe com igual entusiasmo e imaginária batuta às mãos, ele já estava desde o começo.
Uma história feita de algodão
Foi no final do século XIX que o Seridó encontrou o que seria provavelmente a sua vocação mais característica, o plantio do Algodão, com uma variedade resistente à seca e de fibras longas denominado de Mocó, ou algodão do Seridó. A história de ascensão e queda do algodão no Seridó é acompanhada pela história do mundo. O fim das aquisições do algodão norte-americano pelos ingleses veio com a declaração da independência, viabilizou a produção no sertão e o transformou numa fonte de receita mais importante que a cana e o gado na região.
Com o deslanchar do século XX, porém, vieram outros produtores, e também alguns problemas. A expansão em São Paulo se deu com o declínio do ciclo do café, e com o avanço do agronegócio para as regiões centrais do país, acrescidos de tecnologia e alta produtividade em terrenos menos difíceis. Mas antes disso gerou riqueza, trabalho e muita história no sertão. As marcas estão nas fazendas, nos galpões de beneficiamento abandonados nas cidades, nas fotos nas paredes e na memória de cada cidadão. Hoje, o plantio é quase nenhum, mas a esperança de que volte a ser vigoroso está nas pessoas e na iniciativa na indústria de confecção e institutos interessados em recuperar essa vocação, refazer o caminho, o que passa obrigatoriamente por revisar o passado e aprender o que de melhor se aplica no cenário atual.
Quando tentamos entender o que desencadeou o declínio, ouvimos muitas versões, e elas se completam, e se somam à dinâmica global e nacional que já mencionamos. Um vilão frequentemente mencionado é o bicudo, também conhecido por Anthonomus Grandis, besourinho de ocorrência em todas as américas, e que de fato ocorreu, qualquer um na região tem essa resposta na ponta da língua. Uma versão mais densa e interessante foi a de que a polinização natural gerou um híbrido entre duas espécies, o herbáceo e o arbóreo, e que se tornou dominante, com fibras curtas e de menos produtividade, tornando a cultura já difícil quase impossível. Mas o que ninguém nega é que o clima mudou, os invernos ficaram menores e menos generosos, e tirar alguma coisa da terra ficou mais difícil. Não precisa ser do sertão para chegar a essa conclusão, a ciência diz isso, o mundo diz isso, mas quem diz isso bem é seu Zé Dudu, com a sabedoria de quem já viveu 90 anos e ficou pra contar tudo e mais um pouco.
Marcamos de conversar com Zé Dudu e outros na Fazenda Talhado, que já mencionamos antes. As marcas do melhor que o algodão já proporcionou ainda estão lá. Centenas de alqueires de pasto e serras, uma casa centenária de cômodos largos e um pé direito digno de castelos, que é pra fazer circular o ar e amenizar o calor.
Retratos e objetos de uso por todo lado, mas sem moradores, salvo em uma ou outra ocasião especial. Ao lado, à distância de passos, um galpão de beneficiamento da colheita com uma impressionante prensa tocada a força de homens para compactar os fardos e do outro lado, anexado à casa, o armazém de mantimentos onde os funcionários chegavam às centenas ao fim da semana para adquirir a farinha e os itens básicos à sobrevivência com o pago do trabalho.
Os olhinhos claros de Zé Dudu brilham quando ele fala da montoeira de gente à frente do casarão pra fazer as compras, e das festas que varavam o dia e a noite. Zé Dudu é de festa, ainda. Ele conta sua história com uma clareza invejável, das coisas boas e das não tão boas também. Herdou o apelido do homem que criou seu finado pai, e que abandonou o sertão uma única vez, quando por desentendimento com o patrão foi de “pau-de-arara” numa viagem de 18 dias para Uberaba, “vendido, não empregado”, diz sem qualquer cerimônia, como se fosse um fato normal da vida. Voltou poucos meses depois e passou a trabalhar com a família Braz, de quem não mais se desconectou até hoje, uma cumplicidade de décadas.
O algodão ficou pra trás, aos poucos, e o ofício foi mudando junto, trabalho no campo, duro, todos os dias, mas com a “graça de Deus”. Zé Dudu faz uma pequena reverência e tira o boné toda vez que menciona o nome do senhor, e quando perguntamos a sua versão para o fim do algodão ela aposta suas fichas como todos no clima, mas do seu jeito: “O Deus é um só, mas a natureza muda”. E mudou.
Saindo sem sair
Comemos um bom queijo de coalho queimado na chapa do fogão à lenha, bebemos um café, e fomos embora do Talhado, do Sertão, do Seridó, do Rio Grande do Norte e de Acari com um aperto no peito. Foram 4 dias de convivência intensa com uma vida brasileira, intensa e rica, e até então desconhecida, ao menos para mim. Um milhão de novidades, e a sensação de que falta muito, ainda há muito a ver, e uma dívida também grande com essas pessoas e essa terra generosa.
A vida acontece onde tiver que acontecer, e isso responde a uma pergunta antiga que eu sempre fiz: por que as pessoas escolheram viver nesse lugar onde a existência se apresenta tão difícil? A gente não escolhe o lugar, o que a gente escolhe é viver, e vive-se com o que se tem, e fica melhor se você amar o que se tem. Eles amam o que têm, e por isso fizeram a cidade mais limpa, o melhor IDH, a banda mais animada, o melhor queijo manteiga e as melhores conversas que se pode ter, à beira da mesa ou sentado na pedra debaixo de uma sombra ao sol do meio-dia.